Por Giuliano Biondi | Fotos de Thiago Prestes
(Asteroide)
I
“A comunicação pode ser muito chata”, vociferava Gustavo Karam em meu ouvido.Sua voz competia com One More Time, do Daft Punk, na festa de encerramento de Cannes. Sua linha de raciocínio desembocava em um dos porquês da relevância de Cannes Lions hoje em dia. “Disruptura de mercado, cara. Trends, trends, trends. O que queremos inventar para ser refeito em várias versões depois.” Quem concorre em Cannes Lions são os maiores do mundo. Para citar agência e marca do ano, Wieden+Kennedy e Burger King, em uma disputa feroz com a Nike. Estes que sobem ao Palais para receber um troféu em formato de leão – feito de ouro, prata, bronze, vidro ou titânio – representam a nata de 3% do mercado. Mas segundo Karam, Produtor Executivo da Final Frontier em Xangai, em 2 ou 3 anos, os 97% estarão seguindo os caminhos ditados nessa passarela da propaganda por onde as grandes vencedoras de Cannes desfilaram.
“Às vezes você acha que aquele lugar foi feito pra você, outras vezes você se sente um peixaço fora d’água.”
Este ano era eu, Giuliano Biondi, e Thiago Prestes, respectivamente sócio e diretor da Asteroide, produtora brasileira no seu terceiro ano de festival. Buscávamos o que todo mundo busca em Cannes. Algum prêmio, amizades construtivas, mas principalmente uma ideia que virasse uma chave na cabeça neste meio tão ávido por reinvenções. Começou em Paris. Todos conhecem o fetiche que criativos sentem por deixar coisas para última hora. Havia, portanto, um trecho do aeroporto Charles de Gaulle para Cannes que deixamos para comprar na véspera, o que resultou num pernoite em um albergue de Paris e um trem para pegar às 6:12 da manhã do dia seguinte. Andamos pela Bastilha, por Champs D’Élysées, atravessamos o Louvre e, à meia noite em Paris, estávamos às margens do Sena sob a lua cheia. Estava exausto. Dormi um sono tão pesado que acordei apavorado, ensopado de suor, em um estado de completa confusão mental. Não sabia quem era, onde estava dormindo, e por que raios deveria pegar um trem.
II
Chegar em Cannes é aquela sensação que eu tinha no colégio, uma gangorra eterna de pertencimento e não-pertencimento. Pra falar a verdade, essa é uma sensação que eu tive a vida inteira, não só no colégio. Parece que o pessoal do audiovisual me vê como um publicitário, ao passo que os publicitários me veem como uma produtora, ao passo que os empresários me veem como um artista, ao passo que os artistas me veem como um empresário ao passo que ninguém, na realidade, dá a mínima. Cannes é mais ou menos isso. Às vezes você achaque aquele lugar foi feito pra você, outras vezes você se sente um peixaço fora d’água.
Então começou com a gangorra pra baixo, numa festa na praia do Google onde eu não sabia exatamente o que fazer com minhas mãos e provavelmente estava com um shorts curto demais pra nossa década. Achei que seria uma boa ideia voltar com os shorts jeans dos anos 80, mas minhas reservadas coxas, até então no anonimato, provavelmente sentiram-se traídas nessa história.
A gangorra foi pra cima quando saímos daquele lugar e entramos numa festa fechada. “Sapatos para fora, s’il vous plait, sejam bem-vindos ao iate do grupo FCB”. O carpet daquele iate trazia algo que meus pés nunca haviam provado até então. Foi o abraço que eu precisava para me sentir incluído naquele evento. Um abraço nos pés. “Se você gostou desse carpet, você precisa ver o piso do banheiro”, proferiu solene Eduardo Karas, da produtora de áudio Canja. Karas tinha razão. Aquele piso emborrachado do banheiro levou a festa para outro nível. Tudo estava mais leve. Conversávamos amenidades com os convidados, como a escolha ousada e acertada da pizza de aliche para o jantar.
“Fuck that. Let’s cause some fucking problems”
Até que, dado momento, no qual me orgulhava de problemas resolvidos no passado com minha produtora, Tim Hawkey, CCO da Area 23 de NY, respondeu algo que ecoou em minha cabeça. “Fuck that. Let’s cause some fucking problems”. Porra. Finalmente algo a se pensar. E eu me preocupando com o tamanho do meu shorts. A partir daquele momento, tudo que eu veria de interessante no festival iria convergir para essa declaração. Fade out.
III
Fade in. Areia branca. Brisa do Côte d’Azur. Justice assume as picapes. Um albatroz desliza pelo céu de brigadeiro. Coral de minas: “Time’s up, kick start, keep on traaaack”. Entra arpejo de violino. Volta coral: “Flags out, sit back, safe and soooooound”. Entra o bate-estaca que todos amam, com a dupla de house francês que todos amam. Celulares pra cima. Aperol Spritz. Furor. Moedas tilintando no bolso. É um mistério por que em lugares de primeiro mundo como Europa e EUA você acaba acumulando tanta moeda. Cale-se. Apenas sinta. Corte seco.
Tapete vermelho. A clássica escada do Palais du Festivals é invadida por uma tropa de policiais. Um grupo de ativistas ambientais do Extinction Rebellion havia tomado conta das escadarias para pregar o fim do mundo. Seria cômico se não fosse necessário. Na hora da prisão os ativistas deixavam o corpo mole, tendo que ser arrastados um a um pela polícia como sacos de batatas, tornando o espetáculo ainda mais chocante. Esses franceses entendem de revolta.
Essa confusão me trouxe novamente ao x do problema, que era causar problemas. A coragem de comprar brigas resume muito o novo tom de voz da publicidade deste ano em Cannes. Ao passo que as marcas desceram do pedestal para dialogar de forma horizontal com seus consumidores, elas tiveram que adotar valores humanos para sua comunicação. Mas para uma comunicação efetiva de verdade, compartilhável, tiveram que assumir posições em relação a esses valores. O resultado é a emocionante campanha Dream Crazy da Nike, por exemplo, tomando partido de temas como feminismo e racismo. E provando que não ficar em cima do muro é fundamental para uma campanha de impacto. Não sejamos inocentes, tudo faz parte da lógica de mercado: alto impacto por menos grana. No Martinez, quartel-general de encontros boêmios em Cannes, Bruno Regalo, Diretor de Criação da TBWA/Chiat/Day em Los Angeles, explicava muito bem tudo isso: “Um like é que nem um abraço: ‘toma aí, vai’. Não vale muito. É melhor ter um cara que compartilhe uma coisa tua do que 100 likes”. E pra ter isso, advogates da marca, é preciso tomar partidos. E pra tomar partido tem que ter estômago.
Dito isso, vale lembrar um fato que ocorreu este ano na publicidade brasileira: a censura do comercial sobre diversidade do Banco do Brasil da W/McCann. É importante salientar que a classe empresarial elegeu Bolsonaro por causa de sua promessa liberal de campanha. O que a W/McCann estava acertadamente buscando era enfrentar de igual a concorrência de grandes bancos como Itaú e Bradesco. Era uma corrida para ganhar novos clientes. Bolsonaro, ignorando qualquer estratégia, mandou tirar do ar, simplesmente porque não gosta dessas coisas. Mas adivinha quem entende de comunicação e comprou essa briga? Exato, Burger King. A atitude do presidente de censurar o comercial, jogando no lixo a estratégia de uma empresa do tamanho do Banco do Brasil, mostra o completo desconhecimento de Bolsonaro tanto de comunicação quanto de valores de livre mercado. Acima de tudo, mostra o perigo de termos uma pessoa tão despreparada nessa cadeira.
Mas tudo tem um lado positivo. Kleber Mendonça Filho trouxe o Prêmio do Júri de Cannes (no caso, Cannes de filmes, não o Lions), e aqui em Cannes Lions tivemos um caso correlato: o clipe de Baco Exu do Blues recebeu o Grand Prix em Entretenimento, desbancando Beyoncé e Jay-Z. O lado positivo é que muito da força dessas poderosas obras de arte vem do combate ao clima sombrio e distópico gerado por este governo.
Mas uma briga com bolsominions não é nada comparado a Uncensored Playlist da Dahouse e DDB Alemanha. Os caras pegaram matérias jornalísticas censuradas dos países mais adeptos à censura do mundo, regravaram em forma de música e lançaram no Spotify – que é liberado em todo lugar. Detalhe: os caras da Dahouse são brazucas. Brazucas que nunca mais poderão colocar o pé na China novamente. Leão de Titânio pra eles.
IV
Na reta final, junto com a ressaca acumulada, padeço da irresponsabilidade de ter perdido duas coisas bem importantes: meu iPad e a chave do Airbnb. Mas seria loucura me preocupar com aquilo, faltando tão pouco para acabar o festival. “Prestes, haja o que houver, hoje comeremos ostras.”
As ostras da Riviera. É fascinante imaginar que há trezentos mil anos apreciávamos o mesmo banquete, um molusco primitivo, sobrevivente de longínquos aeons. Exatamente a mesma ostra crua, o mesmo sabor. Nunca uma receita manteve-se imutável por tanto tempo, eis o nível primal de sofisticação desse prato. A grande mancada é eu não ser milionário, dado tamanho apreço por ostras e pisos de iate.
Mas tirando ostras e iates, a vida do criativo é dura. Por isso, em Cannes, seja no Palais, seja bebendo no Martinez, as lições de vida que mais me marcam são as de resiliência. Porque no final das contas, é tudo muito foda mesmo. Quando os lendários Rich Silverstein e Jeff Goodby subiram ao palco para receber o Leão de St. Mark por suas carreiras (para se ter uma ideia, a campanha americana Got Milk? veio desses senhores), eles falaram sobre a importância de continuar seguindo em frente e, principalmente, de continuar se importando. Depois de 10 anos de produtora, hoje eu vejo o quanto isso é verdade. Nosso meio é sobre resiliência: tijolo por tijolo, dia após dia, Cannes após Cannes. É esse tipo de coisa que dá o gás que você precisa: trocar ideia, por exemplo, com caras do nível de Wilson Mateos, VP Criativo da Leo Burnett, que frequenta Cannes desde 1995 e diz não trabalhar para uma marca, para uma agência, ou nem mesmo para si. “Eu trabalho pelo trabalho. Pra fazer a coisa mais do caralho que eu posso fazer”. Ou ouvir histórias de Eduardo Marques, CCO da Publicis Espanha, da época em que um estagiário precisava escrever 200 títulos para se manter no emprego. Essas coisas já valem o festival, pois você se renova pra cacete.
“Prestes, haja o que houver, hoje comeremos ostras.”
Chega um momento da festa em que é tudo tão massa, tudo tão emocionante, que você se vê acordando inútil no dia seguinte, completamente estragado, às 11:47 para pegar o trem das 12:10. Minha namorada me esperava em Rennes, dez horas de distância de Cannes. Na pressa de ir embora, perdi a chave reserva do Airbnb, deixando a casa aberta. E mesmo assim, perdi o trem. Tive que pegar um hotel pra ficar mais um dia na cidade.
V
Chegando no hotel, enfio a cabeça no travesseiro e uma miríade de problemas se apresenta como uma mão de canastra: mulher do Airbnb putaça, namorada putaça, dinheiro de passagem jogado no lixo, iPad Pro perdido no trem, o corpo literalmente pedindo penico em circustância de todas as festas daquela semana. Dormi, mas acordei suando frio mais uma vez. Minha mente estava fritando de culpa. Precisava sair daquela piração mas não sabia nem por onde começar. O problema é que hoje em dia nunca desligamos. Por mais que esteja em Cannes, não se desliga do Brasil, não se desliga de e-mail, de Instagram, e da mais invasiva de todas as redes: WhatsApp. Queremos respostas na hora de quem quer que seja, e somos cobrados da mesma maneira. Não temos noção do quanto estamos nos fazendo mal. Quem diria que era assim que nos sentiríamos no dia em que pudéssemos acessar qualquer informação do mundo em segundos. Se descrevêssemos tudo o que estaria ao alcance do nosso celular para um cara da antiguidade, certamente ele diria que somos parte divinos. No lugar disso, nosso cérebro está fritando. O hardware não acompanha. Certa vez, relatando essas nóias para meu sócio Tiago Gavassi, ele sabiamente respondeu que isso era problema meu. Ou seja, problema de um cara de 30 anos, que viveu o mundo analógico e o digital. Para quem já nasceu dentro da internet, esse é o normal. O ritmo é esse mesmo, tá tudo certo.
Bem, foda-se. Desliguei meu celular e saí na rua para simplesmente tomar uma Fanta francesa – o que, aliás, recomendo: é diferente a Fanta da França. O clima estava perfeito para uma camisa de manga comprida e uma bermuda. O calor das pedras. As luzes amareladas. O suave burburinho dos restaurantes. Era uma noite agradabilíssima e eu era grato por ela. Nesse clima, pude finalmente me perdoar de todas as cagadas que havia feito. Estava pronto para escrever.
Giuliano Biondi é diretor criativo da Asteroide, produtora brasileira com 20 Leões em Cannes.
Texto publicado originalmente na Ideafixa.